Num desses dias felizes que dá pra ir pra casa dormir depois
do almoço os meus olhos te olharam em cima da estante. Sentadinho entre os
livros, tu ainda estava ali enfeitando todo o meu quarto. Não resisti... e se
agora eu te abraço forte assim, é a vontade de te contar todos os anseios que o
meu coração abriga.
Foi um tempo tão bom, Nounouse, onde tu me levava para um
mundo de paz, cheio de coisinhas bonitas, cores, doces, pincéis, sorrisos com
porteirinhas e caras lambusadas.Tu cuidava de mim e eu de ti. Lembra como era
bom? E quando eu te largava, tu ficava lá naquela pose serena que ninguém
percebia diferente, só eu. Eu que chegava do passeio me desculpando e te
convidando pra dormir agarrado comigo, trazendo um pouquinho de luz quando o
quarto ficasse escuro.
Desatenção tua, quanto tu me abraçou pela primeira vez. Com
aquele olhar tão sincero e pelos macios. Todinho encoberto de encantos, tu
brilhava aos meus olhos. Eu ria dessa gente que não te percebia (mas só quando
não te atiravam no chão, daí eu cuspia fogo pelas ventas). Imagina se eles
acreditariam em mim? A verdade é que eu adorava a nossa cumplicidade. O mundo carrancudo
do outro lado, e tu em poesia junto a mim.
Na nossa casinha de edredom, criávamos tantos contos ali. Eu
era bailarina, princesa, fada, camponesa. Tu que inventava pra mim. No nosso
castelo eu sorria com meus dentes que me faltavam e recordava dos nossos planos
de fugir para a terra do nunca. Tu me falava que desejava ficar amigo da Sininho
e eu que queria voar. Já pensou encontrar Papai do Céu?
Nunca me esqueço daquela noite que planejamos roubar uma
estrela. Mas eram tantos os obstáculos, aquele céu era tão infinito. Tu teve medo,
me olhou com aqueles olhos inquietos me lembrando que era um urso e não um
pássaro. Então eu te desenhei um par de asas, simples. Tu alçou vôo por minha
causa. Trouxe a estrela. Eu nem acreditei. Segredo nosso, Nounouse: mas eu guardo
ela comigo até hoje.
Aí a gente brincava. Agora eu era mamãe ursa. Te molhei, sem
nem lembrar que não dava. Tu teve que fincar pendurado lá no quintal tomando
sol. Lembro o quanto insisti pra dona Marlene deixar eu te passar protetor.
Quanta trapalhada minha!
Acontece que eu fui crescendo e hoje me restou a gratidão, a
ti, por ter deixado comigo lápis de cor e música. Nem me perco, assim.
Sabe, Nounouse, tem um moço que adoça os meus ouvidos e
canta o que eu penso da nossa história. Ele fala que no tempo da maldade a
gente nem tinha nascido. Não tinha mesmo, não.
Mais tarde eu vou te levar daqui, tu vai fazer companhia
para uma princesa linda de sorriso maroto. Então, te faço um pedido: Virá
bússola dela? Explica da mágica, do bom de não entender. Deixa que ela te vista
da tua redoma. Poesia. Cintilar de ti, ela carregará.
Agora vamos dormir pequeno, te entrego uma canção de ninar.