21 de mar. de 2014

-Eu disse para a mãe que eu estava pensando em casar contigo. Aí ela me disse que tu como uma moça bonita já deveria ser casada, é verdade isso?

-Não, Léo. Eu ainda não encontrei meu príncipe.

-Hmm... Mas olha, não fica triste. Não tem a ver com sermos bonitos ou não. Eu sou bonito e ainda não encontrei ninguém para casar comigo.

Leonardo, 8 anos

19 de mar. de 2014

Ontem à noite eu resolvi fazer uma massa, enquanto esperava a água ferver fui para a cama ler. O livro me prendeu tanto a atenção que esqueci da panela e da fome. Fui dormir.

Eu não me lembro da última vez que tive pesadelos na vida. Eu deito e durmo e só acordo com o despertador. Mas hoje, por volta das 2hs eu acordei chorando, assustada, havia tido um pesadelo realmente digno deste nome. Então, resolvi levantar e ir até a cozinha pegar água. Só que a vida toda eu durmo com uma garrafinha de água na cabeceira, e não sei como, naquele momento, eu não lembrei disso.

Quando eu chego na cozinha encontro a panela em chamas. Parecia que aquilo tudo tinha começado naquele exato momento, porque só o tempo que eu fiquei em choque olhando foi suficiente pra se alastrar de uma forma absurda.

Eu tava com a porta do quarto fechada e com certeza não veria nada se não tivesse tido um pesadelo, se não tivesse resolvido levantar por causa desse pesadelo (primeira vez na vida que faço isso), se não tivesse esquecido que tinha água na cabeceira. Para eu sair do ape para pegar um extintor teria que passar pela cozinha, como eu faria isso se não tivesse acordado naquele exato momento?

Quem me conhece sabe da minha fé, das minhas crenças. Mas também sabe que eu não saiu por aí tentando evangelizar o mundo. Sempre respeitei as convicções de cada um e inclusive já tive debates saudáveis com ateus. Outro dia tava conversando com uma grande amiga, e ela me indagou: “Mas Josi, tu apertaria a mão de um homem que justifica a morte de homens, mulheres e crianças por meio de ordens divinas? Tu coloca tua fé nele? Eu não, eu me recuso".

Agora, me expliquem, o que foi que aconteceu essa noite?

Não acho que podemos explicar Deus na sua plenitude, mas a razão é suficiente para justificar a conclusão de que um criador transcendente do universo existe e é a fonte absoluta de bondade moral. Ele é a melhor explicação para a existência de tudo a partir de um momento no passado finito, e também a para o ajuste preciso do universo, levando ao surgimento de vida inteligente. Deus também é a melhor explicação para a existência de deveres e valores morais objetivos no mundo. Com isso, quero dizer valores e deveres que existem independentemente da opinião humana.

E cada dia mais eu acredito na existência de Deus não apenas como mais uma questão de fé, mas passível de prova lógica e racional.

13 de mar. de 2014

o caminho para o trabalho era o mesmo. a vózinha fazendo sua caminhada matinal, o cheiro de café da casa amarela, o abano pro tio da padaria, a moça loira passeando com o cachorro, tudo igual, se não fosse um olhar assustado e uma memória sem fim que veio depois do abraço.

fiquei por alguns instantes tentando lembrar o ano, mas desisti quando tive que fazer contas.
eu acabara de voltar das férias. sentava na primeira carteira da fileira do meio da classe, o que dificultava que ele, um guri tão preguiçoso para os estudos, se pusesse a caminhar em minha direção. mas mesmo assim, ele veio. e veio vindo como quem não entrega que vem, do mesmo jeito que não entregava o que sentia por mim. veio vindo com uma retidão sem pressa, em passos bem marcados, daqueles de quem pisa no caminho acertado da vida, daqueles de quem se propõe a sentenciar o futuro antes que o destino se dê conta da sua existência. afinal, a vida da gente só é da gente mesmo quando a gente não espera para viver, quando a gente adianta a chegada ao fim da dor, antes da mão do destino, antes que o destino nos olhe e venha nos socorrer. e era assim que ele vinha, se fazendo despercebido para o destino, para os colegas, para o que ele mesmo tinha se feito como guri, negando suas características de aluno indisciplinado, insensato, insensível. ali, naquele momento, havia toda uma coordenação em seus movimentos, ele vinha com disciplina nos pés.

eu, em meio aquele tumulto de gente que falava sem parar sobre seus episódios de férias, não tirava o olho da porta da sala, na expectativa de vê-lo em meio a minha saudade, que provavelmente deve ter me ajudado a ensurdecer para os outros quando o vi entrar.

não se passaram quinze segundos do caminhar dele da porta até a minha carteira para que eu soubesse que aquele instante tornar-se-ia o sorriso mais longo do dia.
eu estava ali imóvel acreditando que ele não me veria, acreditando que ele não teria sensibilidade suficiente para criar coragem e esquecer os outros e ter razões de se lembrar de mim. mas naqueles quinze segundos eu percebi o quanto a saudade dele era parecida com a minha, o quanto o retorno às aulas havia demorado a chegar para ele como para mim, o quanto ele era capaz de determinar o que ele queria e alcançar o que principia o sorriso de uma guriazinha que estava a descobrir o mundo.

e ele veio. com rumo certo no par de tênis de que eu gostava. ele não dobrou na primeira fileira em direção ao fundo -onde ele sentava. ele veio vindo com os olhos absortos nos meus. não cumprimentou ninguém, não viu ninguém. entrou no corredor da minha fileira. e, ainda com a mochila nas costas, abaixou até a altura da minha face, me deu um beijo na bochecha e então foi ao seu lugar. não disse uma palavra. não pronunciou uma onomatopeia que não fosse o estalar do beijo que havia me dado.

passou o ano todo me cercando com o olhar, talvez seu melhor vocabulário.
mudo. silencioso. quieto. cheio de verdade.
certamente não era preciso dizer nada.

e agora o que eu sinto é saudade de tudo que a gente é e sente quando se é criança.

11 de mar. de 2014

em frente aos fogões a lenha, as antigas amanheciam antes do sol e talvez se deitassem antes de estarem cansadas para o outro dia. o que havia naqueles temperos do passado e nas manhãs em que os galos é que despertavam só podia ser um mistério das coisas inacabadas. nos mercados em que iam não se achava nada pronto. eram os ovos, eram farinhas e mais o que precisavam cheirados com os dedos, olhares e narinas. como se as antigas estivessem a procurar uma concha integra de caramujos vivos numa praia de conchas pisadas. voltavam ao lar e amanheciam no dia seguinte. estavam dispostas a passarem o pré-almoço fazendo a refeição da família com um amor que não tem pressa para gulodices. o vinho que se punha à mesa havia sido preparado há muitos anos e naqueles dias tinham elas o prazer de colher os verdadeiros frutos da uva. estavam no tempo certo no qual as coisas nunca estavam prontas e careciam delas para o preparo e, consequentemente, para o seu sabor.

nos dias de hoje, a mais linda das antigas que eu tive a graça divina de conviver, a dona Eva, me diria que o mau do mundo são as coisas prontas. são esses pacotes que se vendem no mercado e que podem se comprar muito depois de se apagar a luz do sol. aquelas mulheres diriam que, na verdade, não estamos prontos para o passado e ansiamos com muita pressa e desgraça o sabor do futuro.

e desse mundo que nos dá temperos prontos e rápidos elas lamentariam, com certeza.
boa parte da minha vida eu acreditei que o mundo se bastava em acordar, abrir uma lata de leite condensado, misturá-lo ao nescau e ficar me acabando naquele potinho enquanto meu desenho preferido passava na TV. eu demorava para acabar minha doce invenção para que ela durasse o tempo exato do desenho. e quando terminavam, o desenho e o meu potinho de leite condensado, eu tinha vontade de fazer mais um pouco daquela mistura, mas me continha. eu me proibia de sentir o gosto do meu doce inventado mais uma vez porque sabia que o desenho não estava lá para acompanhá-lo. e o potinho de leite condensado sem o desenho do fantástico mundo de Boby era a maior traição que eu podia cometer comigo mesma, eu já sabia que existiam coisas feitas para outras coisas, assim como agora sei que existem pessoas para outras pessoas, feitas doce e desenho.

eu cresci.