13 de mar. de 2014

o caminho para o trabalho era o mesmo. a vózinha fazendo sua caminhada matinal, o cheiro de café da casa amarela, o abano pro tio da padaria, a moça loira passeando com o cachorro, tudo igual, se não fosse um olhar assustado e uma memória sem fim que veio depois do abraço.

fiquei por alguns instantes tentando lembrar o ano, mas desisti quando tive que fazer contas.
eu acabara de voltar das férias. sentava na primeira carteira da fileira do meio da classe, o que dificultava que ele, um guri tão preguiçoso para os estudos, se pusesse a caminhar em minha direção. mas mesmo assim, ele veio. e veio vindo como quem não entrega que vem, do mesmo jeito que não entregava o que sentia por mim. veio vindo com uma retidão sem pressa, em passos bem marcados, daqueles de quem pisa no caminho acertado da vida, daqueles de quem se propõe a sentenciar o futuro antes que o destino se dê conta da sua existência. afinal, a vida da gente só é da gente mesmo quando a gente não espera para viver, quando a gente adianta a chegada ao fim da dor, antes da mão do destino, antes que o destino nos olhe e venha nos socorrer. e era assim que ele vinha, se fazendo despercebido para o destino, para os colegas, para o que ele mesmo tinha se feito como guri, negando suas características de aluno indisciplinado, insensato, insensível. ali, naquele momento, havia toda uma coordenação em seus movimentos, ele vinha com disciplina nos pés.

eu, em meio aquele tumulto de gente que falava sem parar sobre seus episódios de férias, não tirava o olho da porta da sala, na expectativa de vê-lo em meio a minha saudade, que provavelmente deve ter me ajudado a ensurdecer para os outros quando o vi entrar.

não se passaram quinze segundos do caminhar dele da porta até a minha carteira para que eu soubesse que aquele instante tornar-se-ia o sorriso mais longo do dia.
eu estava ali imóvel acreditando que ele não me veria, acreditando que ele não teria sensibilidade suficiente para criar coragem e esquecer os outros e ter razões de se lembrar de mim. mas naqueles quinze segundos eu percebi o quanto a saudade dele era parecida com a minha, o quanto o retorno às aulas havia demorado a chegar para ele como para mim, o quanto ele era capaz de determinar o que ele queria e alcançar o que principia o sorriso de uma guriazinha que estava a descobrir o mundo.

e ele veio. com rumo certo no par de tênis de que eu gostava. ele não dobrou na primeira fileira em direção ao fundo -onde ele sentava. ele veio vindo com os olhos absortos nos meus. não cumprimentou ninguém, não viu ninguém. entrou no corredor da minha fileira. e, ainda com a mochila nas costas, abaixou até a altura da minha face, me deu um beijo na bochecha e então foi ao seu lugar. não disse uma palavra. não pronunciou uma onomatopeia que não fosse o estalar do beijo que havia me dado.

passou o ano todo me cercando com o olhar, talvez seu melhor vocabulário.
mudo. silencioso. quieto. cheio de verdade.
certamente não era preciso dizer nada.

e agora o que eu sinto é saudade de tudo que a gente é e sente quando se é criança.

Nenhum comentário:

Postar um comentário