2 de out. de 2013

asa da borboleta

ela foi assaltada, como todo mundo é aqui, como todo mundo sabe que vai ser um dia.
e, eu sei, eu amo essa cidade. poderia estar agora trabalhando lá naquela outra em que as pessoas dormem com as portas abertas, abri mão dessa chance. não tenho nem esse direito de reclamar.

mas por que com ela? sem demagogia, que fosse antes comigo. porque com ela tinha sido diferente. e foi diferente porque ela é diferente de todo mundo. ela é de verdade, não tem casca, dirige mal, tem fé, respeita os mais velhos, sabe ser feliz com a felicidade dos outros, é honesta. ela é quase de vidro. não, vidro até que é resistente, ela é feita de um material como a da asa da borboleta. você já encostou na asa de uma borboleta? ela se desmancha na mão. deixa um brilhinho nos seus dedos e desmancha. ela é isso. e quando o guri quebrou o vidro do carro dela, ameaçou-a com uma faca e ela olhou de perto aqueles olhos drogados, ela se desfez. soltou um brilhinho no banco do carro e desapareceu. é claro que o corpo dela estava ali, em pedaços, mas quem a conhece sabe que ela de fato não estava.

eu tenho tanto ódio desse guri, porque o que ele fez com aquela asa de borboleta vai ser difícil demais de reparar. ela já era medrosa, ficou mais. já morria de medo de dirigir, agora vai ter ainda mais. ela já tinha pesadelos, acordava chorando. eu não quero pensar como vão ser as noites dela agora. eu queria mesmo era zelar os seus sonhos. e se ela acordasse num susto, de repente, eu faria como ela fez comigo quando eu senti a dor do fim do meu primeiro amor. eu não conseguia dormir, chorava, chorava, chorava. não conseguia fazer mais nada. os outros me ligavam e me convidavam pra sair pra dançar.
ela não. ela entrou no meu canto, no meio da madrugada, acendeu a luz, pegou um caderno no chão, uma caneta e fez um jogo da velha. "Vai, é tua vez." depois de quatro partidas eu roncava que nem um porquinho na lama. acordei doze horas depois. e assim foi durante várias noites, até eu cicatrizar aquele amor de criança. queria agora pegar uma folha de papel, desamassá-la e jogar jogo da velha com ela, até o brilhinho da asa da borboleta voltar, até a borboleta  uma outra vez achar que o mundo é feito de flores. porque o mundo não é, o mundo na verdade muitas vezes é feio. o mundo são meninos drogados que ameaçam pessoas, e eu não quero mais falar sobre o que o mundo é, é algo que não me dá prazer algum.
mas ela, ahh, ela solta brilhinho de borboleta na vida dos que a cercam.

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